A Sociedade Portuguesa de Autores manifesta o seu sentido pesar pelo falecimento do jornalista e escritor Armando Baptista-Bastos, associado da cooperativa desde 1980 e seu cooperador desde Dezembro de 1998. Baptista-Bastos, nascido em Lisboa em 27 de Fevereiro de 1934, foi distinguido com a Medalha de Honra da SPA em Maio de 2008. Foi autor, em 2007, da mensagem do Dia do Autor, com o título “As Palavras, Como É Hábito”, que se publica, também como homenagem, no final desta crónica evocativa do cooperador.
Foi um dos mais talentosos e influentes jornalistas portugueses da segunda metade do século XX, tendo integrado as redacções do “Século”, do “Diário Popular”, ” de “o Diário”, da “Seara Nova”, do “Europeu” e sido colaborador de muitas outras publicações, caso do “Jornal do Fundão” e do “Diário Económico”. Apresentou na SIC o programa de entrevistas “Conversas Secretas” e, a convite do jornal “Público”, realizou uma série de 16 entrevistas com o título genérico “Onde é que você estava no 25 de Abril ?”, posteriormente editadas em CD-Rom.
Foi ainda correspondente da agência France Presse em Lisboa.
Deixou uma importante obra como ficcionista, de que destacam títulos como “Cão Velho Entre Flores”, “Viagem de um Pai e de um Filho pelas Ruas da Amargura”, “A Colina de Cristal”, “Cavalo a Tinta da China”, “Um Homem Parado no Inverno” e “No Interior da Tua Ausência”.
Foi distinguido, entre outros, com o Prémio Literário Município de Lisboa, em 1987, pelo romance “A Colina de Cristal”, com o Prémio do PEN Clube, pelo mesmo livro e com o Prémio do Centro Português da Associação Internacional de Críticos Literários, em 2002, pelo romance “No Interior da Tua Ausência”. Recebeu ainda dois importantes prémios pela sua obra como cronista, publicada em livro.
Baptista-Bastos foi um homem corajoso e combativo, um inimigo da mediocridade complacente e oportunista, um cidadão de convicções e de paixões, alguém que sempre amou Lisboa e fez dela um elemento fundamental da sua identidade. Muito do que pensava e sentia deixou-o dito nas suas crónicas, que deverão continuar a ser lidas e recordadas por serem um retrato poderoso do nosso tempo, ao longo de várias décadas. Soube ser amigo do seu amigo e frontal no que não podia deixar de ser dito. Talvez por isso, o seu nome foi menos lembrado nos últimos anos do que poderia ter sido, num tempo de tantas efemérides e por vezes forçadas homenagens e evocações. B-B era também, por via da amizade com Fernando Lopes, um autor ligado ao filme “Belarmino” e autor de ensaios de referência como “O Cinema na Polémica do Tempo”, de 1959, e “O Filme e o Realismo”, de 1962.
A SPA tinha programado um livro com Baptista-Bastos para a colecção “O Fio da Memória”, mas o seu estado de saúde não viabilizou infelizmente, a concretização do projecto.
Baptista-Bastos estava a escrever um livro de memórias.
O seu funeral sai da Sala-galeria Carlos Paredes, na quinta-feira para o Cemitério do Alto de São João, onde será cremado.
A Direcção e o Conselho de Administração da SPA endereçam à viúva e aos filhos de Armando Baptista-Bastos o sentido testemunho do seu pesar pela perda agora sofrida.
AS PALAVRAS, COMO É HÁBITO
Qual o poder do Autor, num mundo onde as palavras foram substituídas por números que subtraem, omitem ou rasuram as pessoas? Apesar do cerco actual, aprendemos com outros cercos e sobrevivemos a outros perigos e ameaças. A nossa história foi-se construindo na ilusão, um pouco louca, um pouco presunçosa, de nos anteciparmos a nós próprios a fim de estabelecer a ponte entre isto e aquilo.
Escrever, criar, sonhar não são, apenas, representações: são projectos e projecções ideológicos, e renovadas relações entre História e memória. Não há que fugir a isto: ao compromisso exemplificado na declaração tremenda de que a batalha pela liberdade de criação implica a recusa da mentira e uma permanente resistência à opressão e à tirania. Temos de estar cada vez mais atentos e cautelosos. As minúcias do cerco tornaram-se extremamente subtis e, por isso mesmo, mais operativas. Querem fazer-nos crer na fragilidade da palavra, na fugacidade da arte, na desimportância do acto de pensar. Acaso essas afirmações possuam algo de verdadeiro. Porém, a opção cultural não é questão de previsões, de cálculos, de estatísticas – exactamente porque estamos a falar da condição humana, a argila com a qual o Autor molda a natureza das suas imperfeições, na procura de uma improvável perfeição.
O nosso horizonte nasce e amplia-se através de fortes imperativos éticos e de consistentes decisões morais. A estética resulta do almofariz onde se procede a essa fusão, e a invenção de formas provém da probidade com que trabalhamos no nosso ofício. O Autor não é uma criatura neutra e muito menos independente ou imparcial. Escrever, criar, sonhar são sempre lugares de encontro e de procura do outro. Interpelar é tomar o partido da compreensão, para se refazer o caminho. Responsáveis pelas nossas palavras, poderemos vir a ser culpados de as utilizar sem a autoridade moral e a nobreza por elas exigidas. Com o tempo e com a prática aprendemos que as coisas insignificantes devem ser tratadas com a maior seriedade.
Talvez o mundo de outrora fosse mais simplificado, sem deixar de ser menos complexo ou perigoso. Enfrentámo-lo na certeza de que as palavras continham, no seu bojo, a magnitude da esperança, e a crença de que poderiam modificar as coisas e os destinos. Enfrentámo-lo no limiar do desassossego que torna cúmplices o coração e a razão.
Enfrentámo-lo e aqui estamos, herdeiros de um legado de insubmissão e de altivez. Aqui estamos, para o que der e vier.
Com as palavras, como é hábito.
Baptista-Bastos
(Texto lido no Dia do Autor, 22 de Maio. 2007)
Lisboa, 10 Maio de 2017