TRABALHO, INTELIGÊNCIA, CRIAÇÃO, ARTIFICIO E PODER
Este dia do autor celebra em primeiro lugar o trabalho de produzir, inovar, acrescentar, executar, obras que se colocam no domínio da criação. Nada é mais ambíguo do que a criação, com a implícita ideia de que alguém, o autor, traz ao mundo das palavras, dos sons, dos gestos, das imagens, algo de novo. Isso é excepcional e não é a norma. A norma é mais modesta, implica a imitação, a cópia, muitas vezes o lugar comum, a moda no sentido pejorativo, a propaganda, o marketing, a intriga, a fama dos 15 minutos, a superficialidade, e aquilo a que chamamos muitas vezes mau gosto.
É verdade, mas, no julgamento da autoria, o que conta não é ser árbitro do gosto, mas ser trabalho. A décima palavra deste texto é isso mesmo “trabalho”, e os perigos e os riscos para o trabalho de autoria são muitos antes de chegarmos àquilo que hoje é o medo da Inteligência Artificial. Censura, roubo de direitos, cópia, proletarização de quem escreve, canta, dança, representa, toca, pinta, e um sistema de subsídios que premeia a mediocridade com “conhecimentos”, ou a quem está no local certo na altura certa, assente no controlo político e no favoritismo.
Mas há riscos e são de dois tipos: um, é a crise das nossas ilusões de excepcionalidade; outro, bem mais perigoso, é esquecermos que veem dos homens e não das máquinas os piores dos riscos, porque nunca na história da humanidade uma tecnologia por si só teve um papel de mudança, a não ser pelos homens que a dominam e pela sociedade onde se desenvolve.
Comecemos pelo primeiro.
Hoje a Inteligência Artificial é apresentada como um risco para a criação e para a autoria. Mas os homens sábios já de há muito deveriam saber que iria ser assim. O preço maior que se paga é nas humanas ilusões. É o preço que se paga pela ilusão de que o humano é algo de diferente da natureza e das máquinas. Não é. Com Copérnico, com Darwin, com Freud e agora com o ChatGPT, percebemos que o nosso lugar não é nem único, nem privilegiado. Com Copérnico saímos do centro do mundo, com Darwin percebemos que somos um animal criado pelos mecanismos do acaso e moldado pela selecção natural, com Freud sabemos que nem sequer mandamos em nós próprios, que o Id é mais poderoso do que o Ego.
Com a Inteligência Artificial, que tem uma longa história, percebemos o alcance do dilema de Turing para o autor: não somos capazes de distinguir se quem responde às nossas perguntas do outro lado do muro é um homem ou uma máquina. Talvez porque seja possível, e nem sequer muito complicado, fazer uma máquina responder como se fosse um humano, derrubando mais uma barreira da ilusão da nossa excepcionalidade. Até aqui tudo está bem, as máquinas vão poder fazer medicamentos, ensaios literários, pinturas, edifícios, investigações, alguns textos, músicas, por aí adiante.
Aqui, o homem só tem uma vantagem, a sua imperfeição. Nós movemo-nos na imperfeição. Para o bem e para o mal. Não há por isso nenhuma razão para temer a revelação dessa imperfeição pela perfeição das máquinas. Bem pelo contrário, é na imperfeição que ainda existe a autonomia do humano. Para já. Quem faz autómatos e quem faz avanços na Inteligência Artificial, quer construir máquinas perfeitas, mesmo que nessa perfeição tente também mimetizar a imperfeição humana. Mas ninguém vai controlar um aeroporto, projectar a orbita de um satélite ou de um míssil, andar num carro sem condutor, ou fazer um autómato militar, com imperfeição incorporada. Pelo menos, para já.
Talvez a imperfeição seja a última ilusão da excepcionalidade humana. Para já, também os humanos são melhores máquinas imperfeitas do que os computadores e os autómatos, mas aqui chegamos ao segundo dos riscos: imperfeição é humana e como tal pode ser criativa ou devastadora. E a história mostra mais um rastro de crueldade e violência, de abusos e desigualdades, com os homens particularmente criativos para usar para o mal todo e qualquer avanço tecnológico. E é por isso que, nos chamados perigos da Inteligência Artificial, é para os homens que nos devemos voltar, porque são eles que vão, – estão, – a perceber primeiro do que todos como a podem usar em proveito próprio, das causas do dinheiro, da opressão e do poder. A ameaça não é a Inteligência Artificial mas as oportunidades que dão a humanos que estão no lado da manipulação, da exploração, da violência, da ditadura e da guerra, e de sociedades presas na facilidade, no engano, na arrogância da ignorância, no comodismo, na incultura, no falso igualitarismo que esconde o poder.
É contra esses que os autores e o seu trabalho, imperfeito que seja, ganham mérito e valor, usando também, para o bem dos homens, as enormes virtualidades de ter uma máquina a pensar connosco.
José Pacheco Pereira
22 de Maio de 2023