Mensagem da autoria de Nicolau Santos
NUNCA PRECISAMOS TANTO DE POESIA
Não sei o que é boa ou má poesia, assim como não sei o que é um bom ou mau quadro. Sei a poesia de que gosto e a de que não gosto. Sei que todos os grandes poetas tem alguns poemas que me deixam completamente indiferente e sei de maus poetas que tem pelo menos um poema que me toca. Sei de quem sabe burilar as palavras e de quem só as coloca em tosco. Sei de quem sabe tirar leite das pedras e de quem nunca lhes descobre a magia. Sei que a poesia nunca será reduto só de uns, deixando à porta os refugiados da palavra. Não conheço o jardim onde nascem os poemas nem o cemitério onde se enterram os maus poetas.
Sei que a poesia é a tradução dos sonhos, uns melhores, outros piores, uns excepcionais, outros banais. O sonho da evasão, do impossível, do intangível. O sonho de podermos voar. Eu, quando morrer, gostava de voar em direção ao meu país perdido, que eu sei que ainda existe algures a sul, mesmo que os donos do país que lá existe, e que já não é o meu país, me tenham proibido agora de ter a nacionalidade do meu país. Mas isso já aconteceu a tantos poetas, dos verdadeiros, dos bons, dos grandes e eu não sou poeta…
Além disso, como sublinha o Manuel António Pina, não importa onde os poemas são escritos porque eles estão dentro de nós e nós pertencemos sempre ao mesmo sítio embora possamos estar noutros sítios, muito longe do sítio a que pertencemos.
Gosto de aeroportos, porque aí começam muitos sonhos. Todas as pessoas deviam ter um aeroporto dentro de si. Assim como há a literatura de aeroporto, também deve existir a poesia de aeroporto dentro de nós. É quando os poetas ou simplesmente os escrevinhadores de poemas encontram alguém que os ensina a pendurar-se nas estrelas e a deixar voar o pensamento para lá de todas barreiras humanas, deixando atrás de si um rasto do pó brilhante das galáxias.
Também gostava de estar sentado numa nuvem a dar pontapés na Lua, como dizia o Mário-Henrique Leiria. É assim que devíamos viver a vida toda e não a calcular o PIB, e o défice, e a dívida, e o quantitative easing, e as taxas de juro, e a taxa de desemprego, e a confiança dos investidores e dos consumidores, e a actividade empresarial. A poesia nunca entra nas reuniões da Comissão Europeia, e do Eurogrupo, e do Banco Central Europeu e do Fundo Monetário Internacional.
E no entanto eles torturam as palavras, tentam que abdiquem da poesia que está dentro delas para que elas nos cheguem amaciadas, tranquilizadoras, anestesiantes, não vá termos algum sobressalto cívico e as coisas não correrem como eles querem. Depois, há muitas pessoas que vão às televisões dizer-nos palavras que têm outros significados. Falam-nos em reestruturação e querem dizer encerramentos de empresas, agências de bancos, serviços. Falam-nos em rescisões por mútuo acordo e querem dizer despedimentos. Falam-nos em racionalização dos serviços públicos e querem dizer que vamos ter menos apoios sociais e um Serviço Nacional de Saúde pior por falta de meios. Falam-nos em resolução e é mais um banco que vamos ter de pagar. Falam-nos em procurar oportunidades de emprego e é para a emigração que nos estão a enviar.
Como diz a Filipa Leal, a Europa continua a fazer contas – quem deve, quem empresta, quem paga – enquanto os seus filhos têm fome e sono e medo do escuro. “Eu acreditei em ti / e tu roubaste-me o futuro e o dos meus irmãos”, escreve ela – e eu subscrevo. E os poetas, todos os poetas subscrevem. Esta não é a Europa solidária sonhada pelos pais fundadores. Esta não é a Europa das luzes, da cultura, do progresso e da modernidade. Esta Europa é mesquinha e gerida por mangas de alpaca com dedos sujos da tinta com que passam os cheques e unhas compridas de avidez. Nesta Europa não há espaço para sonhos, para a imaginação, para o indizível, o extraordinário, o intangível. Nesta Europa, a poesia não tem lugar à mesa.
A poesia não traz qualquer mais-valia, nem faz subir os índices na bolsa, nem paga ordenados de luxo. Não há nenhum poeta que tenha ficado rico em termos materiais a escrever poesia. Ao contrário, há muitos poetas que morreram na miséria. A poesia só atrapalha a vida dos que não querem saber para nada da poesia. A poesia só inquieta os que querem a vida sem qualquer poesia. A poesia não contribui para o aumento da riqueza nacional medida pelas estatísticas, mesmo que já tenha sido inventado o PIB medido em termos da felicidade. Mas esse nunca entra nas contas dos credores, dos investidores, dos banqueiros, dos empresários, dos corretores, dos mercados.
E no entanto nunca precisámos tanto de poesia. E no entanto a crise e o ajustamento e a austeridade e a troika e a subida de impostos e o corte de salários e a vida cada vez mais cara e difícil e o desemprego e a emigração e o péssimo futuro da Nação, nada, mas mesmo nada conseguiu impedir que a poesia renascesse por toda a parte. Há cada vez mais poesia e mais poetas. Bons, maus, assim assim, excepcionais, medíocres. Há cada vez mais bares e teatros e cinemas e restaurantes e anfiteatros onde se diz poesia. Há cada vez mais livros de poesia de editoras com nome, sem nome ou de vão de escada. À medida que o PIB encolhe e a pobreza envergonhada aumenta temos cada vez mais necessidade de poesia. Para dizer não aos mandantes, dizer não aos executantes dos mandantes, para escapar à padronização que nos querem impor, para fintar o destino a que nos estão a acorrentar e para lhes provar que podem confiscar tudo – menos domar o nosso espírito, a nossa liberdade de criar, a nossa vontade de sonhar.
Sim, eles têm tudo e nós só temos as mãos cheias de nada. Mas o que eles têm vale muito pouco quando as palavras se juntam em torno da poesia. É essa rebeldia que eles temem, a rebeldia das palavras que não controlam, a rebeldia dos poemas que escapam para a rua e vão de casa em casa acordar a consciência de cada um, e dar-lhes esperança, e anseios, e vontade de mudar. Eles querem-nos fracos de corpo mas sobretudos fracos de espírito. Querem-nos mansos e subservientes, agradecidos e obrigados. Mas não conseguem travar a poesia. É ela que nos alimenta, é a nossa seiva, o nosso húmus, é ela que faz com que “os braços dos amantes escrevam muito alto / muito além do azul” (Mário Cesariny) todas as palavras-sonho, todas as palavras-esperança que eles não querem que sejam escritas, todo um futuro diferente daquele que estão a preparar para nós.
Apetece gritar-lhes muito alto, como fez Natália Correia: “Ó subalimentados do sonho / A poesia é para comer!”. Viva a Poesia!
Nicolau Santos
Jornalista, poeta e divulgador de poesia