Mensagem da SPA, da autoria do encenador e cenógrafo João Brites para o Dia Mundial do Teatro (27 de Março)

Como quem chora e ri com a própria sombra

Neste Dia Mundial do Teatro de 2017, é para ti que já não tens sombra, que nós escrevemos. Gostaria que soubesses que por toda a parte se faz Teatro. A consciência de que temos uma sombra que nos pertence, constrói um outro eu com quem podemos dialogar. Os filósofos gregos apropriaram-se da ideia de sombra e atribuíram-lhe significados que identificamos como uma aproximação ao nascimento do Teatro, mas é muito provável que os nossos antepassados tenham exercitado a capacidade de jogarem com as sombras projetadas nas cavernas quando dominaram a capacidade de fazer fogo. As pequenas comunidades elaboraram as sonoridades que progressivamente se organizaram nos fonemas que permitiram contar as primeiras histórias. Muito antes da capacidade de escrever, de registar as experiências vividas e as outras, inventadas, os contos terão passado de geração em geração sem deixarem vestígios materiais.

A arte de contar histórias, na mistura do discurso direto com o indireto, introduziu a habilidade de construir outras vozes, outras pessoas, a que poderiam corresponder outras sombras. Há mais de cinquenta mil anos ter-se-á colocado o problema da representação das coisas, e consequentemente o da memória e o da repetição. Ainda hoje é este mesmo problema que todos os dias tentamos resolver quando nos confrontamos com os públicos, e é ao procurarmos desenvolver essas competências estruturantes que nos apercebemos da sua importância na coesão das entidades individuais e coletivas.

Associado à movimentação dos corpos que em torno das fogueiras esboçavam os primeiros passos, elaboraram-se as sonoridades que iriam dar origem à noção de música. As sombras deformadas nas cavidades das grutas terão desenhado as primeiras cenografias. Os gestos e o virtuosismo na movimentação das mãos contribuíam para uma apropriação coletiva dos conhecimentos e eram extraordinários auxiliares na construção dos pensamentos, na formulação das ideias que se podiam transmitir. Essas sombras terão então suscitado sustos, risos, lágrimas, dores, emoções, palavras. Palavras que construíam conceitos e contradições, que faziam perguntas e procuravam dar respostas, que contracenavam com outras pessoas e com as próprias sombras. Assim, e em tempo real, com a presença de atores ao vivo, foram criadas as narrativas e as representações de tensões e de conflitos que estão na génese do Teatro.

Apesar de me parecer um mau prenúncio que este Dia Mundial de Teatro aconteça a uma segunda-feira, precisamente no dia em que os teatros estão, em princípio fechados, é para ti companheiro de Teatro, que nós escrevemos. Na maior parte dos casos os deuses sempre recearam e perseguiram o Teatro e nós sabemos que sempre estivemos sujeitos a pequenas e a grandes intempéries. Mas também sabemos que continuamos a ser compulsivamente irrequietos e desestabilizadores. Temos orgulho em sermos os herdeiros dessa tradição milenar que terá começado naquelas pequenas comunidades, apenas com dezenas de pessoas no paleolítico, e que cresceu com os atores e os filósofos gregos nos grandes teatros que os mecenas e os poderes políticos construíram para acolher dezenas de milhares de espectadores. Ao longo de milhares de anos o Teatro afirmou-se, e nós somos os discípulos desta prática artística. A arte teatral opera com os mais polifacetados recursos artísticos e é por isso a mais dotada para continuar a contar histórias e a representar personagens no presente.

Hoje, depois das mais contundentes experiências do Teatro praticado pelos povos mais distantes no tempo e no espaço, das cerimónias medievais, dos projetos realistas, expressionistas, dos surrealistas e da abordagem mais cruel, simbólica ou conceptual, estamos aqui bem vivos, de carne e osso, prontos para sermos mais um elo na cadeia deste contínuo desígnio. Não a pensar em nós próprios, no sucesso, na vaidade ou na fama e nos prémios. Estamos aqui para contribuir para a mudança do mundo na incessante procura de uma felicidade mais constante e partilhada.

Durante dezenas de anos a continuidade de projetos como o da Cornucópia cativou um lugar na memória de cada um. Aquela sala de teatro que, como uma caverna, persistentemente escavaram, – e onde partilhámos tantas sombras que nos ajudaram a crescer como pessoas e como artistas, – passou agora para as mãos de quem sinta a necessidade de a usar preservando o seu espírito. Mas se é indispensável não perder a memória, também é indispensável manter viva a curiosidade em acompanhar os projetos que, com maior ou menor longevidade, se afirmam e muito especialmente os que nascem, titubeantes como nascem todos os seres vivos, e ousam lançar as bases de uma continuidade que não quer esmorecer perante as primeiras dificuldades.

Como podes calcular, é sobretudo para ti que vens ao Teatro, que continuamos esta labuta de fazer espetáculos que façam parte da experiência concreta da vida das pessoas que a eles assistam. Acreditamos que o Teatro não é assim tão efémero como poderíamos pensar. Partilhar um espetáculo marcante é o mesmo que participar num encontro memorável onde as conversas se misturam com os cheiros daquele lugar específico, em torno de uma apetitosa refeição acompanhada de bom vinho.

A memória não é uma coisa do passado quando algo de inexplicável perdura e se prolonga no tempo. Faz parte do presente ao ficar atualizada a cada instante com outros tantos novos estímulos sem deixar de manter uma relação com os referentes icónicos. É por isso que pode continuar viva a voz do ator, uma ou outra palavra escrita, uma imagem que, como uma fotografia ficou impressa na mente. A memória estabelece uma equação sistémica com as efemeridades que se gravam na pele a cada instante. Nem sempre tem lógica e nem compreendemos bem o que ficou do outro em nós próprios, o que ficou da sombra do outro na nossa própria sombra.

Também é para mim que faço Teatro, que agora escrevo, porque ando quase sempre insatisfeito com o que faço e quase sempre revoltado com o mundo que me rodeia. Diria que temos de continuar a sonhar com um país que pensa e escreve na sua língua; a acreditar que existem políticos que foram eleitos para contrariar a submissão da atividade cultural e artística ao negócio e às leis do mercado, e que acima de tudo, dignificam a vasta comunidade a que pertencem, ao não sujeitar as leis e as normas ao senso comum das maiorias e da sua natural apetência pelo que é mais banal e vulgar. Não conseguimos deixar de pensar que, se queremos combater as ditaduras, os fascismos e outros fundamentalismos, é também ao Teatro que precisamos de dar apoio, porque é a única maneira de a maior parte das pessoas a ele terem acesso, ampliando o seu espírito crítico, emancipando-se na prática de uma cidadania mais ativa. Se cada criança do meu país tivesse a possibilidade de assistir pelo menos a um espetáculo de teatro por ano, se se conseguisse rentabilizar o investimento que o estado fez nos últimos anos ao promover, escolas, professores, programas, construção ou recuperação de teatros, de redes de articulação e de divulgação de espetáculos, poderíamos verificar que não somos suficientes e que de nada vale sermos menos a pensar que assim cada um teria mais recursos. A qualidade precisa das quantidades para se manifestar.

Finalmente para ti que nunca vens ao Teatro é preciso que saibas que continuaremos sempre por aí à tua espera. Se um dia tiveres esse desejo, tem a certeza de que te receberemos de braços abertos. Nessa altura vamos chamar a tua atenção para o facto de não existir propriamente um Teatro, mas muitas maneiras diferentes de fazer Teatro e que, a pouco e pouco, precisarás de te confrontar com essa multiplicidade de estilos para seres capaz de fazer as tuas escolhas.

Acredita que mesmo nos períodos mais horríveis, sujeitos a bombardeamentos ou a perseguições, poder-nos-ás encontrar, como sempre tem acontecido, nas catacumbas das cidades, nas caves dos prédios destruídos ou refugiados nas montanhas mais inóspitas, escondidos nas suas cavernas. Mesmo isolados ou prisioneiros continuaremos a observar a nossa sombra e com ela aprender a ler e a compreender o que ela tem para nos ensinar. Enquanto não for possível roubarem-nos a sombra, não deixaremos de brincar com os efeitos que ela produz nas paredes das grutas, para melhor nos podermos rir ou chorar dela e com ela.

João Brites

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