O ser humano é um animal musical – tanto que somos, ao que parece, o único capaz de fazer Música com um propósito estético, ou seja, ultrapassando a mera dimensão funcional de comunicação no seio da espécie através da produção de sequências organizadas de sons e silêncios, coisa que a linguagem, só por si, poderia perfeitamente assegurar. A organização sonora que está por detrás da prática musical, essa pressupõe também, por certo, como a fala, a vontade de comunicar, mas fá-lo pela procura da individualidade expressiva, da busca de um registo único e original, da capacidade de despertar afetos e emoções irrepetíveis, da aproximação possível a um paradigma de beleza ideal, sempre inalcançável.
A Música está, por isso, dentro de cada um de nós, como parte da condição humana. Nascemos todos com a faculdade de a criar e de a apreciar, e nas sociedades comunitárias tradicionais há um lugar reconhecido para a expressão e a partilha coletiva dessa capacidade individual, seja pelo canto ou pela prática instrumental, seja pela associação à dança. Mas essas mesmas comunidades também reconheceram, desde sempre, que alguns dos seus membros eram excecionalmente dotados para a criação musical, e de tal modo valorizavam esse talento individual que em alguns casos o músico era dispensado das tarefas produtivas ligadas à sobrevivência imediata do grupo para que este pudesse beneficiar da sua arte, considerada também ela, afinal, como um pilar dessa sobrevivência. O músico, cantando ou tocando, era visto, na verdade, como alguém que assegurava funções também elas essenciais para essa sobrevivência da comunidade: a celebração dos marcos do ciclo da vida individual e coletiva, desde os nascimentos e os casamentos às sementeiras e às colheitas; o culto dos mortos e o registo da memória dos seus feitos; a fixação e transmissão da identidade cultural do grupo; a comunicação possível com o divino. Todas as nossas tradições culturais reconhecem, por conseguinte, o lugar especial, único e insubstituível da Música no contexto das várias sociedades em que nos agrupamos, e todas, historicamente, tenderam a valorizar, por isso mesmo, quem a sabe e pode fazer melhor.
Nunca como hoje pudemos aceder tão facilmente à fruição musical. À distância de um clique no teclado de cada computador ou de cada telemóvel, alojadas numa nuvem mágica aparentemente inesgotável, estão alojados dois mil anos de música erudita ocidental, da Grécia Antiga às vanguardas contemporâneas; todas as correntes das músicas populares urbanas do Ocidente, desde a invenção do registo discográfico; todas as tradições milenares das culturas musicais chinesa, indiana, árabe ou africana; todas as expressões vocais e instrumentais de um mosaico crescente de práticas de povos que até há poucos anos estavam restritas às suas comunidades de origem, graças ao desenvolvimento das redes da chamada World Music. Só que esta disponibilidade imediata de uma massa crítica avassaladora de registos gravados nos faz esquecer que por detrás de cada um deles estão o trabalho, os recursos, a criatividade, a sabedoria e o génio de homens e mulheres que dedicaram as suas vidas a esta arte, e cuja sobrevivência depende do reconhecimento dos seus direitos de propriedade intelectual das suas obras e das suas interpretações, e da legítima remuneração do seu esforço que dele deveria decorrer. No dia em que os compositores e compositoras deixassem de criar, em que os cantores e cantoras não voltassem a cantar, ou em que instrumentistas, arranjadores, orquestradores, técnicos de som e toda a cadeia de intervenientes o processo de produção que conduz a esse produtor final parassem de exercer os seus ofícios, a Música morreria, porque ficaria reduzida a um acumular de registo mortos, sem renovação da criação, sem novas leituras do património, sem esse espaço mágico em que o milagre da comunicação musical começa sempre por acontecer e que é o do espetáculo ao vivo, cara a cara com o público.
E no entanto nunca estivemos perante um processo tão evidente de espoliação em larga escala desses direitos elementares de propriedade intelectual e de apropriação indevida da criação artística de músicos e intérpretes, levado a cabo por grandes empresas transnacionais que escapam a qualquer forma de controlo por parte dos governos, invocando o pretexto populista de um direito absoluto à gratuitidade do acesso à Cultura que na realidade esconde uma sede desmedida de lucro que em nenhum momento beneficia os próprios criadores. E ao mesmo tempo assistimos à precarização crescente do trabalho musical, ao enfraquecimento dos vínculos contratuais, à descida constante dos padrões remuneratórios. Ser músico é cada vez mais uma profissão de risco, precária, mal paga, desregulada e socialmente desqualificada.
Tudo isto acontece por uma visão neoliberal descontrolada da vida das sociedades, em geral, e do circuito profissional da Cultura e das Artes, em particular – incluindo, naturalmente, o da Música. Se a dinâmica do mercado é sem dúvida essencial para a diversidade artística, um mercado desregulamentado e guiado unicamente pela ânsia do lucro fácil e rápido acaba por reduzir drasticamente essa diversidade, sobretudo pela concentração do poder, no seu seio, num número cada vez mais reduzido de centros de decisão. E se o Estado democrático não considerar que tanto essa função reguladora quer as suas responsabilidades próprias de serviço público cultural são partes essenciais na salvaguarda da própria Democracia cultural estão criadas as condições para uma crise sem precedentes na própria sobrevivência de um circuito saudável e sustentável de criação musical e de partilha legitimamente remunerada do trabalho dos músicos com toda a comunidade.
O Dia Mundial da Música é, obviamente, o da celebração da criação musical de todos os tempos e de todos os géneros, dessa capacidade tão especificamente humana que contribui de forma tão significativa para esse direito à prossecução da felicidade que a Constituição norte-americana em boa hora soube consagrar entre os direitos fundamentais da cidadania. Mas é urgente que ele seja, cada vez mais, igualmente, o Dia Mundial dos Músicos.
Rui Vieira Nery
Musicólogo