Penso já o ter ouvido referir que um disco se completa com a apresentação em palco, junto do público. Em tempos de pandemia, há muito por completar.
Antes mesmo da pandemia, conseguimos fazer uma digressão bastante grande, que, nomeadamente, foi até à China e Portugal foi corrido de lés a lés. Ainda não se falava em pandemia e estivemos nessa altura no Oriente. Tivemos oportunidade de ver esse disco no palco. Portanto esse disco cumpriu-se. De repente, dá-se a pandemia e há um outro processo comunicacional que começa a acontecer. O processo digital é bem conhecido dos músicos, porque fomos, enquanto actividade artística, os primeiros a sofrer os encargos digitais, porque a música, nos anos 80, foi transformada em CD e depois passou para as plataformas nos anos 90.
“A NOSSA CLASSE TEM INVENTADO VÁRIAS VEZES A RODA. NÓS JÁ FIZEMOS DE TUDO PARA QUE O PÚBLICO SE MANTIVESSE EM CONTACTO”
Esta relação digital com o público não é estranha aos músicos. Mas para os performers, que estão em cima do palco, vivem do contacto com o público, escusamos de dissertar sobre isso. A nossa classe tem inventado várias vezes a roda. Nós já fizemos de tudo para que o público se mantivesse em contacto. Os meios podem ser reinventados todos, mas algo que foi definido há 2500 anos na antiga Grécia, que é a tragédia grega, a comédia grega, que viviam da polis se rever no mesmo espaço de debate, e de se projectar naquela dor ou naquela angústia, tem que se partilhar ao mesmo tempo no mesmo espaço, como uma liturgia. Esse espaço litúrgico, pela primeira vez na história da humanidade, sofreu uma interrupção abrupta.
A actividade do autor, sobretudo ao nível da música, é medida em função das multidões que junta. Ora, quanto mais multidões junta, mais lhe é pedido que junte multidões. É um paradoxo absolutamente insanável.
E este momento que estamos a viver pode ser um acelerador de alteração de paradigma, a própria mudança de paradigma, ou apenas um momento da história da humanidade que se confina a si mesmo, no que respeita às artes e à música?
Eu creio que nós estamos a viver o olho do furacão. Nunca nenhuma revolução foi tão visível. Nem a primeira revolução industrial, com carvão, nem a segunda, com o petróleo, nem já a terceira, com a mobilidade, mas, sobretudo esta, a revolução digital.
Até pela forma de proliferar a comunicação.
Ora bem. É que deixámos de dissociar o que são os media. Passámos a ser todos nós. Cada um pode partilhar as maiores atrocidades. Há até um movimento que se chama “care before you share”, que significa: preocupe-se antes de partilhar, porque isto é como se, em pleno século XVI, tivesse sido dada uma tipografia a cada cidadão.
“TODOS NÓS SOMOS MEDIA. AQUELES QUE PARTILHAM AS FAMÍLIAS
E O PRÓPRIO CORPO, TRANSFORMAM AS FAMÍLIAS E O CORPO NO PRODUTO QUE ESTÃO A COMERCIALIZAR.”
Em termos ideológicos não é necessariamente mau.
Mas é uma discussão filosófica profunda. Há que distinguir desde logo entre o que é opinião e rigor ou, se quiser, entre opinião e ciência, doxa e episteme. Todos nós podemos ter opinião, mas será que a minha opinião é relevante? Será que eu preciso da opinião de um taxista em relação à vacina? Será que eu preciso da opinião do meu advogado em relação a uma intervenção nos rins? Preciso de ciência. Eu preciso de rigor. Mas também não preciso da opinião do meu médico sobre os movimentos sindicais dos taxistas. É preciso saber identificar as fontes que me interessam para discutir o problema em causa. Isso é que faz a clivagem. Mas todos nós somos media. Aqueles que partilham as famílias e o próprio corpo, transformam as famílias e o corpo no produto que estão a comercializar. Todos nós nos tornamos num produto do capitalismo mais puro. Nós anunciamos a nossa vivência, a ida ao jacuzzi e à praia. Eu espero que comece a haver uma certa consciencialização. Eu não sou passadista. É como o lápis… Uns fazem uns rabiscos, Shakespeare escreveu um soneto e outro trespassou um olho com o lápis. O lápis não tem culpa disso. O lápis é movido pela mão. Não é a tecnologia. É a ética. Mas o que vem aí é forçosamente novo em relação ao que acabou.
Está actualmente a gravar um novo disco, mas ainda não tem falado sobre isso.
Estou a gravar, sim, e é um processo cíclico. Passa de uma fase de muita visibilidade para a invisibilidade subterrânea da escrita. É o que faz um escritor de canções.
E agora está também entregue ao ensino da escrita de canções. Como é que se ensina a escrever canções?
Pois. A pergunta é muito pertinente. Eu comecei a aula a dizer isso mesmo: “eu venho aqui falar de uma coisa que não se ensina”. Mas é suposto eu explicar como é que eu escrevo canções. É uma partilha de experiências. A primeira coisa sobre a qual eu falei é que a escrita de canções vem de uma necessidade e de uma transcendência religiosa, sem divino. É a vivência, real , física, os sítios onde se foi, mas também muito do beber da experiência artística. A Literatura é fundamental. Somos capazes de entrar noutros universos. Esses elementos podem eventualmente resultar numa canção.
Mas, no caso do Pedro Abrunhosa, há uma metodologia, um processo que se repete?
Qualquer criador tem a sua rotina e o seu método. Eu tenho o meu. O meu método é não acreditar na inspiração, mas existem gatilhos que permitem chegar a um certo estado de transcendência. Vou todos os dias para o estúdio trabalhar para o piano e às vezes é um sentimento de frustração total. Não adianta nada. Depois há semanas em que escrevo duas músicas e considero uma semana fantástica. Depois tenho os meus truques pessoais harmónicos, uma certa idiossincrasia… Cada um encontra a sua forma de se expressar, recorrendo à técnica que tem à mão.
“O MEU MÉTODO É NÃO ACREDITAR NA INSPIRAÇÃO,
MAS EXISTEM GATILHOS QUE PERMITEM CHEGAR
A UM CERTO ESTADO DE TRANSCENDÊNCIA.”
Há factores sempre presentes no seu trabalho. A língua portuguesa e uma ligação ao tempo político e social.
Creio que tem razão. Em primeiro lugar a língua, porque apesar de ser uma limitação, pois a transcendência não é passível de ser colocada na linguagem, é a maneira mais próxima de fazer com que o outro lá chegue… Sobretudo pela arte. Veja-se o caso da poesia. A linguagem é a maior invenção técnica da humanidade. Eu quando expresso dor faço-o na minha língua. E em segundo lugar é também o que disse… Não é por grande vontade de integração política. Qualquer criação artística é política. É uma redundância falar de arte e de política. Os artistas têm sido, ao longo da história, grandes motores políticos. O criador tem que ser estimulado pelo real.
No seu percurso discográfico, talvez uma verdadeira viagem interior, começa o percurso com um álbum chamado “Viagens” e parece que vai atentando progressivamente uma constante de aprofundamento.
Há uma tentativa. Não sei se chego lá, mas há uma tentativa.
Mas a ideia inerente ao “conhece-te a ti mesmo” também terá muito de tentativa permanente. Não chegará a ser um absoluto…
É isso mesmo. É simultaneamente a impossibilidade de jamais se conhecer. Pelo menos tenta.
Mas é um aprofundamento composto de camadas que se sobrepõem. É isso que tenta fazer?
Sim, creio que sim. Mas quem sou eu para o dizer.
“AS PESSOAS QUEREM SEMPRE O NORMAL …
MAS A ARTE É TUDO MENOS ISSO.
Neste caso, a melhor de todas as pessoas. É do seu percurso e da intenção inerente que falamos.
Pois, mas quem está a viver o sucesso tem uma leitura pessoal. A própria psicoterapia lê de uma forma rigorosa aquilo que o próprio não consegue. O disco “Silêncio”, é um título, por um lado magoado com o sucesso, pois eu vinha do clássico e do jazz, e o “Silêncio” é um afastamento desse circo, que eu não queria. É um disco charneira. Foi recebido com bastante reticência, o que eu entendo, porque as pessoas querem sempre o normal… Mas a arte é tudo menos isso.