A Administração da SPA solicitou à Prof.ª Doutora Patrícia Akester que escrevesse um artigo sobre a votação da Directiva sobre o Mercado Único Digital, em 12 de Setembro no Parlamento Europeu. O seu texto, marcado por um profundo conhecimento da problemática do direito de autor, ajuda a perceber o documento, o sentido dos votos e a relação de forças e as tensões criadas por esta decisão do Parlamento Europeu por cujo sentido justo a SPA sempre muito se bateu em nome dos autores e da Cultura em Portugal.
Patrícia Akester *
A Directiva sobre o Mercado Único Digital gerou enorme controvérsia e falsas questões.
A verdadeira questão é que o tratamento que dá ao direito de autor na Internet desafia o “status quo” existente, retirando poder às grandes plataformas da Internet, norte americanas, em benefício de entidades europeias do mundo cultural e editorial.
Não foi por acaso que essas plataformas criticaram fortemente a Directiva. Os artigos 11 e 13 foram os artigos mais contestados: curiosamente os artigos que alteram o equilíbrio de poder entre tais plataformas norte americanas e a indústria cultural e editorial europeia.
O Pirate Party liderou uma campanha europeia contra a Directiva. A protagonista de tal campanha, Julia Reda, actuou com base numa ideologia que propugna a erradicação do direito de autor em nome de reivindicações de ordem pública, mas na prática, talvez inconscientemente, a campanha em causa serviu os interesses das referidas plataformas.
Na verdade, tentando respeitar o imprescindível equilíbrio entre os interesses do criador e os da sociedade no que concerne à produção e ao uso das obras do espírito, a UE estabelece medidas que beneficiam os utilizadores (artigos 3, 3A, 4, 5, 7 e 8) bem como medidas que beneficiam os autores e titulares de direitos (artigos 11 e 13).
Em benefício dos utilizadores, a Directiva identifica três domínios de intervenção para criação de novas excepções: a prospeção de textos e dados no domínio da investigação científica, as utilizações digitais e transnacionais no domínio da educação e a conservação do património cultural. Pretende a UE que os investigadores recorram com mais facilidade a instrumentos inovadores de investigação de prospeção de textos e dados, que os professores e os alunos possam tirar pleno partido das tecnologias digitais em todos os níveis de ensino e que as instituições responsáveis pelo património cultural (por exemplo, bibliotecas ou museus acessíveis ao público, arquivos, instituições responsáveis pelo património cinematográfico ou sonoro) sejam apoiadas em sede de preservação do património cultural.
Em benefício dos autores e titulares de direitos, a Directiva propõe regras no que toca (i) à utilização digital das publicações de imprensa (press right, artigo 11) e (ii) à utilização de conteúdos protegidos pelas grandes plataformas da Internet (value gap, artigo 13). Vejamos:
(i) Press Right
O artigo 11 permite que os editores possam obter uma remuneração justa e proporcionada pela utilização digital das suas publicações de imprensa por parte das grandes plataformas. Não impede usos privados, nem abrange hiperligações.
Caberá a cada Estado Membro assegurar que os autores recebem uma parte adequada das receitas adicionais assim geradas.
(ii) Value Gap
O artigo 13 incide sobre a questão do value gap, com base nas seguintes
premissas:
- A possibilidade de aceder e partilhar obras protegidas pelo direito de autor através das grandes plataformas da Internet atrai e retém utilizadores dessas plataformas;
- Verifica-se, pois, uma transferência de valor gerado pela presença de obras nas grandes plataformas da Internet; e
- Os autores e titulares de direitos devem receber uma parte do valor gerado por essa utilização das suas obras.
O artigo 13 não é do agrado das grandes plataformas da Internet que há quase duas décadas beneficiam de certos preceitos comunitários (os chamados preceitos porto-seguro da Directiva sobre o Comércio Electrónico) que lhes têm permitido afirmar que são meros intermediários técnicos e obter lucros através da utilização de obras protegidas pelo direito de autor, sem remunerar os criadores de tais obras.
Note-se que o artigo 13 não elimina por completo o recurso aos referidos preceitos porto-seguro, excluindo, todavia, essa possibilidade quando tal se torna manifestamente injusto para autores e titulares de direitos, em função, por exemplo, da quantidade elevada de obras disponibilizadas nas grandes plataformas e dos fins lucrativos das mesmas. Então, diz o artigo 13, que tais grandes plataformas devem celebrar acordos de licenciamento com autores e titulares de direitos, despoletando, desta forma, uma obrigação de remuneração justa e adequada pela partilha de obras através das grandes plataformas da Internet. E só na ausência de acordos de licenciamento entre as ditas plataformas e os autores e titulares de direitos se verifica o recurso à implementação de ferramentas técnicas eficazes para cercear actos ilícitos no âmbito dos sistemas.
Lembremos, por fim, os artigos 14 a 16, dos quais resulta que cada Estado Membro tem a obrigação de garantir que os autores recebem uma remuneração justa e proporcionada pela exploração das suas obras na Internet.
Em sede de princípios, conclui-se que na raíz da controvérsia não se encontra a liberdade de expressão, mas um desequilíbrio de poder na Internet que se encontra dominada por certas empresas norte-americanas.
A UE tem consistentemente tentado controlar os monopólios que ditam unilateralmente as regras de mercado, tentando aqui, regida pela mesma orientação de fundo, reestabelecer a equidade entre as grandes plataformas norte-americanas da Internet e entidades que defendem o Autor e a Cultura europeias.
*Doutora em Direito de Autor e Desafios da Tecnologia Digital, pelo Queen Mary Intellectual Property Research Institute de Londres; Licenciada em Direito, pela Faculdade de Direito da Universidade Católica 1994; Autora de diversos livros e artigos e oradora convidada em seminários e conferências.
Lisboa, 20 de Dezembro de 2018