Mensagem da SPA da autoria do poeta e crítico António Carlos Cortez, para o Dia Mundial da Poesia
Todos sabemos da resposta de Mallarmé a Degas. Quando o pintor confessou o seu desejo de escrever poemas, dado que tinha muitas ideias, o poeta respondeu-lhe que um poema se faz com palavras, não com ideias. Julgo que neste tempo em que, de novo, as palavras parecem perder o seu sentido – à custa de tantas ideias ínvias – é urgente lembrar que o poema é trabalho de palavras. O poema é um exercício que concilia reflexão, ponderação, fidelidade ao que as palavras, na sua radicalidade, significam. W. A. Auden lembra-nos justamente que: um poeta é, sobretudo, uma pessoa que ama apaixonadamente a linguagem. Amar a linguagem é sinónimo de respeitar as palavras. Neste Dia Mundial da Poesia, é esta a mensagem que gostaria de vos enviar, deixando claro que o acto de escrever poesia não pode ser realizado levianamente, pois um poema, em chegando ao leitor, pode ser potenciador da imaginação ou, por ser pobre, um mero desfiar de ideias sem consequência. É contra essa inconsequência do acto de fazer poesia que o poeta consciente do seu trabalho se deve insurgir.
Neste tempo de novas indigências, a responsabilidade poética relaciona-se, portanto, com a importância que devemos voltar a dar à imaginação por meio da palavra. E nesse sentido a poesia não pode ser, também ela, uma outra forma de discurso banal, a fingir marginalidade para se dar ares de arte pobre. Essa hipocrisia é ainda uma forma de pretensão. Se a poesia é arte pobre, é-o não por pactuar com a puerilidade, mas por saber que o seu lugar é do lado das coisas simples, claras e ao mesmo tempo desafiantes. A poesia é arte pobre porque não pretende participar do comércio das palavras, não pode pactuar com a corrupção da língua, manifestação da corrupção das ideias e mentalidades. Neste Dia Mundial da Poesia convém dar a saber que uma poesia que banaliza a própria linguagem é outra coisa, mas não é poesia. Se não surpreende quem lê, não é poesia. Se não faz irromper o estranhamento, não é poesia. Podendo ser simples, devendo rejeitar a grandiloquência, a linguagem poética deve ter temperatura, uma significação que dê ao leitor a possibilidade de estremecimento.
Em profundidade e em extensão a poesia é um acto de cultura. Essa paixão da linguagem define o poeta como alguém que se afirma como artesão (Sophia) e, por isso, celebrar a palavra de poesia é celebrar, na verdade, todos quantos amam o homem, animal de condição verbal, ser criador de palavras, e que corrompe a sua própria humanidade quando corrompe a matéria através da qual se diz e diz o mundo. Neste tempo em que, na política, impera o capitalismo das palavras, recordando Sophia, cabe ao poeta resistir contra a deturpação a que frequentemente nos conduzem aqueles que são adeptos da palavra prática, da palavra técnica. A palavra de poesia afasta-se total e absolutamente desta época da globalização fascizante, deste tempo de traição a projectos fundadores da nossa identidade. A poesia esteve na rua em Abril de 1974. Tem estado na rua contra aqueles que têm como único projecto a destruição da nossa liberdade e das nossas condições de vida. Contra a superficialidade e a ditadura do banal, que pode ser a palavra de poesia? Pode e deve ser palavra artística, exercício de liberdade imaginativa, de associação livre de sons, sentidos e experiências. Por isso ela é palavra perigosa, pois cria sempre a possibilidade de uma heterodoxia.
Lembremos Ruy Belo: ao contrário da palavra útil, a de poesia procura libertar-se (e libertar o Homem) da pulsão de morte que, actualmente, nos ameaça, ora de modo subtil, ora de modo declarado. Falo, para além do fetichismo tecnológico, da ditadura dos mercados, da alienação publicitária, da obsessão pelas estatísticas. Mas também me refiro a novas formas de totalitarismo: o emprego precário tornado algo aceitável e até normal; a ideia de que todos teremos vivido acima das nossas possibilidades… A responsabilidade, neste Dia Mundial da Poesia, é também de ordem ética e não só estética. Devemos dar a ler, nomeadamente na Escola, os nossos poetas, ensinar, com rigor e entusiasmo, textos de quantos, inquirindo a linguagem, exaltaram o Homem e a vida. Tudo isto porque é contra o Homem e a vida que a teologia financeiro-político-bancária tem agido, seja em Portugal, seja na Europa da oligarquia burocrática.
No fundo, celebrar o Dia da Poesia é celebrar a dignidade com que, por meio da arte, celebramos «a fiel dedicação à honra de estar vivo», para lembrar Jorge de Sena. E não, não se veja aqui qualquer espécie de serôdio romantismo ou de crença num qualquer poder xamanístico reservado ao poeta. A poesia, é certo, continuará sendo o reduto de poucos. E o poeta alguém que, apaixonado pela linguagem, procura responder à ditadura da palavra prática. A poesia é, por tudo isto, um irrevogável: é fiel ao facto de ser linguagem – linguagem que sabe dizer não quando se atravessa o deserto de um mundo pautado pela lei do dar o dito por não dito. É irrevogável, a poesia. E sabe bem o que isso quer dizer.
António Carlos Cortez