POR JOÃO DE MELO
O que mais eu amo no poema é a sua proximidade ao sentimento e à música. A Poesia é uma forma de linguagem para a beleza; uma imaginação verbal no seu estado mais puro. Apetece-me fazer-lhe o elogio como se ela fosse algo que estivesse ao mesmo tempo no centro (na essência) e muito para além de toda a Literatura. Alguém inventou o poema para ser cantado; criou-o como forma superior de pranto e oração aos deuses da Música, do Silêncio, do Sonho e da grande Melancolia que atravessa todos os séculos do Homem. Por isso, o poema é ao mesmo tempo dor e canção, desamparo e amor, solidão e solidariedade, desespero e esperança, escuridão e luz perpétua da nossa claridade. Há sempre um lado noturno e outro diurno naquele que escreve o poema.
Mas o que existe de tão luminoso na escrita dos poetas? E que pode haver de poético na linguagem dos prosadores? O poema pertence ao género masculino ou feminino? Perguntas meramente retóricas, não vim para responder. Em todo o caso, penso que há qualquer coisa de múltiplo na ideia de cada um acerca da Poesia. O elogio que dela se possa fazer não deve ser genérico nem abstrato. Cada um de nós traz em si, consigo, uma reserva desconhecida de Poesia. O nosso destino é também o dos poetas. Porque ela, Poesia, é um trabalho da sensibilidade e do ouvido – do ouvido que reconhece a música, mas também do outro: aquele que ouve e escuta o mundo, que ouve o silêncio e a voz dos humildes, dos humildes universais que devíamos ser todos nós. Não se pense que a Poesia mora apenas no poema: existe a prosa poética, tal como há poemas “prosaicos”. Ela é sobretudo uma voz no interior da linguagem, algo como um suspiro ou um grito sem voz, e tanto pode morar à esquina de um soneto ou de uma oitava, como em cima de um muro erguido pelas palavras, isto é, pela prosódia de uma prosa. Cada um de nós deve assumir a condição e o destino do poeta à sua medida, ou à sua maneira. A Poesia não carece em absoluto de forma escrita: está no ar, nos olhos, na palavra dita e por dizer, na sensação e no sentimento do que amamos ou combatemos.
Tal como o poeta, também o poema tem causas a suscitar ou a defender: do amor à amizade, da vida à morte, do júbilo à dor, da indignação à revolta, da rua e da casa do poeta à morada universal da humanidade inteira. Ele está na rua, connosco se deita e se levanta: caminha, trabalha e regressa a casa – “ó subalimentados do sonho! a Poesia é para comer” (escreveu Natália Correia).
A poesia há de ser sempre um modo de sairmos de nós para os outros, e vice-versa. Pertencem-me todos os versos dos outros poetas, bem como toda a música do mundo é minha no momento em que a escuto. O que a mim mesmo não perdoo é o não ter sido eu a escrever versos assim: “senhora, partem tão tristes / meus olhos por vós, meu bem/ que nunca tão tristes vistes/ outros nenhuns por ninguém” (João Ruiz de Castelo-Branco). Ou estes magníficos e melodiosos versos de Camões: “Estavas, linda Inês, posta em sossego,/ De teus anos colhendo doce fruito,/ Naquele engano da alma, ledo e cego, / Que a fortuna não deixa durar muito”.
E que bonito seria se ainda hoje pudéssemos dizer: “posta em sossego” à mulher amada; ou render-lhe maravilhas poéticas como estas: “O meu olhar é nítido como um girassol” (Alberto Caeiro); “Prefiro rosas, meu amor, à pátria” (Ricardo Reis); “No meu país não acontece nada/ à terra vai-se pela estrada em frente” (Ruy Belo); “Há sempre uma noite terrível para quem se despede/do esquecimento” (Herberto Helder).
Mas, muito pior do que isso e o mais, será um homem despedir-se da sua memória da Poesia.
João de Melo
(Lisboa, Março de 2024)